O ano está na metade, mas parece que se foi uma vida em seis meses. Uma, não, já se foram mais de 50 mil só no Brasil. 2020 é um ano horrível, ou mais um, em quase todos os sentidos. Pensando neste catado que viramos como projeto coletivo, não haveria um motivo que fosse para guardar alguma boa memória de 2020. Mas há! Graças às artes e, especialmente, à música.
Duas bandas da memória afetiva de muita gente, sobretudo quem foi da adolescência à vida adulta entre os anos 1980 e 2000, voltaram à ativa em grande estilo neste malfadado 2020. Ira! e The Strokes não se contentaram em voltar a gravar para que não nos esquecemos deles. Foram muito além.
Lançaram álbuns de músicas inéditas, após longos hiatos, que trazem alento, conforto, inspiração, de forma que só grandes artistas são capazes. “Ira” e “The New Abnormal” reúnem várias boas canções, algumas tão boas que remetem aos melhores momentos das suas bem sucedidas carreiras.
Vamos separar esses álbuns a partir de agora para voltar a juntá-los ao fim. Falando da criação de “Ira”, o 12º da banda, Edgard Scandurra disse à Folha de S.Paulo que “o desafio foi não concorrer com nosso repertório, mas fazer canções que estivessem na mesma linha e fossem tão fortes quanto nossos clássicos. Quis retornar aos palquinhos onde começamos em 1981”.
Scandurra e Nasi, o outro pilar do Ira!, conseguiram. 2020 acabará, o quanto antes, esperamos, mas o álbum ficará. Sobram motivos. Um deles surge logo de início, com “O Amor Também Faz Errar”. Está tudo ali. As bases da guitarra de Scandurra, um refrão longo e inspirado, os vocais ao mesmo tempo cantados e falados de Nasi… A música termina resumindo nossa existência em quatro versos:
Tente entender que o amor também faz errar
E acertar
E errar
E acertar
Há muito mais ao longo das 10 faixas do álbum, como em “Você Me Toca”, “Efeito Dominó”, “Chuto Pedras e Assobio”, “Mulheres à Frente da Tropa” e “O Homem Cordial Morreu”. Estas duas últimas são canções políticas. Em “Mulheres à Frente da Tropa”, como o título escancara, o Ira! celebra a luta feminista e, sobretudo, suas protagonistas. Em “O Homem Cordial Morreu”, dá voz à luta interna, de cada um consigo mesmo para sair da passividade.
Esta e “Chuto Pedras e Assobio”, intencionalmente ou não, conectam o álbum com o contexto que vivemos ao escutá-lo. Mas o fazem de forma singela, quase ingênua. Há duas passagens em especial nessa linha. A primeira é de “O Homem Cordial Morreu”:
E se eu me entrincheirar contra o opressor
Que seja ao seu lado
Lado a lado, por favor
Esta é de “Chuto Pedras e Assobio”:
Sempre bem acompanhado de meu eu sozinho
E não penso em mais nada vem ficar comigo
Vai que o mundo acaba, vai que a gente some
Eu caminho pela estrada chuto pedras e assobio
“Você Me Toca” e “Efeito Dominó” são outros grandes momentos. Musicalmente, a primeira é, talvez, a melhor do álbum. “Efeito Dominó”, por sua vez, é uma canção de quase oito minutos, interpretada ora em português ora em francês. Ela conta com a participação de Virginie Boutaud, vocalista da banda Metrô, também dos anos 1980, tanto na composição quanto na interpretação.
Em “The New Abnormal”, sexto álbum de The Strokes, a tônica é outra. Como as letras são todas de Julian Casablancas, vocalista da banda que terminou um casamento de 15 anos em 2019, é inevitável que tratem disso em grande medida, ressoando sentimentos diversos e conflitantes, que vão da lamentação ao conformismo.
As composições das músicas ampliam os sentimentos de Casablancas e as tornam capazes de atingir públicos em contextos distintos. É o caso de “The Adults Are Talking”, a canção de abertura cuja letra parece especialmente inspirada no histórico de relacionamento do vocalista. Por outro lado, é um clássico instantâneo, com variações melódicas que vão ganhando força até atingir seu ponto alto.
As primeiras cinco faixas do disco se diferenciam das quatro últimas, que têm um ritmo mais arrastado. Outros grandes momentos nessa primeira metade são “Bad Decisions” e “Eternal Summer”, o que não significa que “Selfless” e “Brooklyn Bridge to Chorus” fiquem para trás. “Bad Decisions” ressoa os primeiros trabalhos, que catapultaram a banda ao estrelato, enquanto “Eternal Summer”, com sua pegada funk, é outro exemplo de maturidade musical.
“At the Door”, o primeiro single do álbum, abre a parte em que o estado de espírito das letras se mescla com o das músicas, ao ponto de ela terminar com Casablancas cantando por duas vezes o seguinte:
I’ll be waiting for the old times
Waiting for the time to pass
Fechando o disco, a parte final de “Ode to the Mets” é melodicamente mais tocante e igualmente forte na sua mensagem:
The only thing that’s left is us
So pardon the silence that you’re hearing
It’s turnin’ into a deafening, painful, shameful roar
Esta recapitulação não tem a pretensão de ser exclusiva, claro. Há outros álbuns que podem ou poderão entrar na lista do que 2020 deixará de boas memórias. São os casos de “color theory”, de Soccer Mommy, e de “Saint Cloud”, de Katie Crutchfeld, a.k.a. Waxahatchee, mas eles ainda requerem novas audições. Com ou sem companhia, “Ira” e “The New Abnormal” já são suficientes para salvar 2020.